terça-feira, 7 de outubro de 2008


Alegoria de Morte Celebrada

Morte celebra vida,
vida celebra morte.
Vida mata morte,
morte não mata vida,
se vida, vida, vida.

Mata a morte,
celebra a vida,
celebra a vida,
vida... vida...
até que a morte
morra sufocada.

Um brinde a morte,
que já se vai tarde,
sebo nas canelas
vai buscar mais vida.

Pois que a morte
pode estar dormindo,
um traiçoeiro sono
de espreita astúcia.

Nem de overdose
mata-se a morte,
de felicidade, sorriso,
ou sorte?

Celebra a vida,
Vida... vida...
até que a morte
morra sufocada.

Sebo nas canelas
vai buscar mais vida,
antes que do sono traiçoeiro
acorde.

Axidox (ou “A Tremenda Cara-de-Pau do Incrível Hulk”)

O cão ladra... o gato?
O pobre rouba... o rico?
Titia foi ao shopping
alugar um fardo novo.

Estão todos felizes,
comendo Mc tripas,
ouvindo cantigas de ninar,
calorosas risadas gorgonzola,
patê de humanos e pão.

Veias entupidas,
não se agüenta tanto
ópio, chá, televisão.

Dou esmola, voluntário,
reciclo meus sentimentos.

Vou dar um rolex,
pra relaxax,
vidro de carro,
carro de vidro,
assalto, fome, pivex.

Meu cabelo com gelatina,
minha cara com parafina,
preparado para a missa das oito.

Sexo na Esquina

O olhar é de fogo
e o desejo queima.
As horas ardem
e me consomem.

Carnes devassas
vão e vêm,
açougues ambulantes
em acordos ecumênicos,
que não salvam.

Atiraram na bruxa,
acertaram a fada.

Em ritos sumários,
balas açucaradas
saem dos revólveres
com CEP e endereço:
“Humanos”.

Cinqüenta bilhões de micróbios
consomem-te,
devoram-me,
fazem bacanais no teu jardim,
assistem TV no meu sofá.

Não, não vou para casa,
que ninguém me espere.
Por favor, em pé,
na esquina,
deixa a vida escorrer.

Vampiro

Morde o pescoço,
lambe o sangue,
vampira sua existência.

Adentra suas fendas e fere,
não estanque agora.
Avance mais um pouco, arf.

Geme, mexe a carne.
Em frente, não pare arf.

Levante sua presa,
machuque seu orgulho e arf.

Ataque de surpresa.
Arranca, puxa com força,
atira suas carrancas,
mostra seu domínio e os dentes.

Balance sua presa e arf.
Aspire à alma,
despreze o corpo.

Nada de vestígios,
ninguém viu nada.
Vista sua capa
e vá embora.

Ilha de Poeta

Desenha a nave,
desdenha o navio,
desarma a bomba,
adentra e explode.

Sem arranhão,
cabeça de letras,
de sonhos
e de metralhadoras,
atira em peito próprio.

A taça,
arma mortal,
seduz a garrafa
e bailam.

Ele se basta!
E crava
o punhal
na palavra.

Insônia

Mais calado
o pensamento revoa,
em bando.

O tic-tac penetra
e soneia.

Sim ou não,
destoa
a mistura de sons.

Um tic...
Aperto... tac,
encobre a visão,
penumbra.

Castelos e Delícias

Às vezes me sinto arremessado.
Num vôo breve, caio num castelo.
Que se faz ali? Que me faço ali?

Como fartamente, bebo mais,
inebriado em acordes melodiosos,
graciosas cítaras e harpas.

Intruso, hóspede ilustre,
deito-me com a mais bela serva,
presente de plebeu ao príncipe.

Sirvo-me de carneiro, preservo o rei,
para sempre seu inimigo.
Às vezes me sinto arremessado
e posso atacá-lo e morto.

Volto para a aldeia,
bebo na taberna,
danço com a madona,
trepamos num muro.

Às vezes bebo um muro,
danço com um castelo,
vôo com a madona,
trepamos na taberna.

Às vezes bebo uma taberna,
danço com um muro,
vôo com a madona,trepamos num castelo.

Dunas Cruz e Sousa

Para pintar Cruz e Sousa,
duas cores: preto e branco.

Para abrigar Cruz e Sousa,
duas pontes: dia e noite.

Para negar Cruz e Sousa,
duas fontes: ouro e ferro.

Retratos de um negro
na parede alva,
moldura em cera,
figura a macabra cena:
banquete de migalhas, poemas.

Na corte esplendorosa,
de sangue azul, verde e amarelo,
um escravo das letras cor de fome.

Que ousadia, este tolo é fértil.
E te roubo até os pensamentos.
Matei o poeta, então durmo com ele,
núpcias eternas em belo palácio.

“Eu só queria castelos de areia,
um caldeirão fervilhando,
ora feijão, ora versos.

Um canto quente de amor...
Gavita, grávida, linda,
crianças sorrindo e tudo belo.

Por que não me cortaram as mãos,
ou me mandaram às canas,
puxar carroças que levam gente?

Ah! Este brilho nos olhos que me devora.
Que a pena no tinteiro não me falte agora.

Peguem meu corpo, meu nome,
encham-se de glória.
Deixem-me sobre a areia, nômade,

ventos, tempestades, versos,
dunas Cruz e Sousa entre tantos tortos,
milhares de poetas
mortos...”

domingo, 20 de julho de 2008

Amarelo Canário

O canário engaiolado,
longe das Ilhas Canárias,
olha o trânsito da cidade
e canta para ninguém.

Não, não mais lamenta estar preso,
já testemunhou vários suicídios.
Lamenta, talvez,
sua pequenez de canário.

O rapaz lhe trás água e comida,
sorri e faz carinho.
O pássaro come e bebe,
um gosto amargo de jiló.

Percebe e inquieta-se, faz alarido,
debate-se no pequeno espaço.
Depois se acalma e se cala,
nada mais por fazer.

O canário olha a janela e sabe,
aquele é um pássaro que não voa.

Inicia um canto de despedida
enquanto estraçalha-se
nas grades da gaiola.